segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Tema para reflexão: a tradição já não é o que era?



(Ilustração: http://detesto-sopa.blogspot.pt)

A ideia de uma reescrita “atualizada” dos contos tradicionais, no que aos valores diz respeito e tendo como objetivo a conformidade com a matriz de valores da sociedade ocidental global dos nossos dias, parece-me de todo descabida, por desnecessária e empobrecedora.

Não significa isto que os contos tradicionais, tal como os conhecemos hoje, na sua forma escrita e passada pelo labor literário, não sejam já, também eles, resultado de múltiplas transformações. Aliás, muito antes da fixação pela escrita e da criação escrita, o conto fez parte de uma tradição oral de prática comunitária, em que o contador executava a parte do reportório conhecido que mais convinha ao auditório e ao seu próprio talento, “tratava-se, portanto, da actualização de ‘um esquema relativamente abstracto’, em que os detalhes e a fala eram constantemente adaptados aos usos locais, sem que, no entanto, se produzissem inovações que desrespeitassem a lógica do conto e a escolha dos materiais (os motivos) utilizados pela tradição”. Como sublinha Denise Paulme, «la quête d’une version initiale, d’où toutes les autres seraient dérivées, est illusoire».

André Jolles fala da ‘forma simples do conto’, referindo-se a esse fundo capaz de permanecer idêntico nas várias atualizações que dele se façam e considera, precisamente, que “através do maravilhoso, que lhe é imprescindível, o conto desencadeia uma moral ingénua que corresponde às expectativas do leitor, ou seja, no universo do conto as coisas acontecem como gostaríamos que acontecessem – repondo a justiça, premiando os bons, castigando os maus, etc. – e opõem-se ao universo real, que Jolles considera trágico”.

Esta presença do maravilhoso, quanto a mim, acentua a alteridade desse outro mundo que é o ficcional. Ao ouvir/ler a fórmula inicial, a criança transporta-se para esse outro tempo e espaço de leis e de lógicas diferentes. A “narrativa maravilhosa, apesar de recorrer a situações estranhas e sobrenaturais, fá-lo assumindo claramente o seu carácter simulado e criando um mundo paralelo sem hipótese de contaminação com o mundo real”.

A não ser em casos graves de perturbação de ordem psíquica da criança, não creio que a audição e leitura de contos tradicionais possa ser responsável pela aquisição de valores considerados hoje incorretos e pela futura adoção de comportamentos desadequados. A presença nas narrativas desses valores tradicionais ultrapassados, e atualmente negativamente conotados, tem justificação histórica e a sua adaptação à mentalidade atual constituiria, portanto, uma perda desse valor histórico. Por outro lado, a sua manutenção, numa versão mais próxima da que terá sido a original, poderá proporcionar ao educador, se quiser intentar esse tipo de exploração, o confronto desses valores e, eventualmente, a defesa de um caminho percorrido pelo Homem no sentido da perfeição

Por outro lado, do educador depende, também, a leitura prévia, a escolha, a forma de contar, a atenção ao seu auditório e a avaliação da receção, sobretudo aquando de leituras feitas para os mais pequenos. A presença, a sabedoria e a voz reconfortantes de quem lê poderão impedir eventuais reações de medo ou de choque que excedam o aceitável frisson de excitação e de envolvimento no enredo.

Bem menos controláveis, são as reações a gravações áudio de histórias tradicionais e a filmes de animação, em que não é possível dosear o efeito sonoro ou/e das imagens. Jovens da casa não suportavam, numa cassete áudio com a história da Branca de Neve, o episódio do abandono na floresta, bem acentuado, orquestralmente, com sons de tragédia e ventos sibilinos; no entanto, se em vez do som gravado, a melodia fosse a da conhecida e segura voz da mãe, a história seguia o seu devir, recheada dos mesmos pormenores terríficos, mas sem dramas na receção.

Maria Manuel Carvalhais, outubro 2011
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JOLLES, André (1972). Formes Simples. Paris : Éditions du Seuil, p. 173
PAULME, Denise (1976). La mère devorante. Paris: Gallimard. Apud ZEGGAF, Abdelmajid (1987). Le statut des variantes, in Cruzeiro Semiótico. Porto, p. 43
REIS, C., LOPES, Ana C. M. (1990). Dicionário de Narratologia. 2ª ed. Coimbra: Almedina, p. 81.
SANTOS, Maria Manuel (2000). O Fantástico na Ficção de A. M. Pires Cabral. Vila Real: Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, p. 46, 49 e 69.

1 comentário:

  1. Estimada Colega Genial:
    Li, atentamente, a sua soberba e admirável explanação sobre a importância ou não, dos Contos Tradicionais e o seu "contacto" nas crianças e adolescentes e fiquei maravilhado e deslumbrado.
    "...Esta presença do maravilhoso, quanto a mim, acentua a alteridade desse outro mundo que é o ficcional. Ao ouvir/ler a fórmula inicial, a criança transporta-se para esse outro tempo e espaço de leis e de lógicas diferentes. A “narrativa maravilhosa, apesar de recorrer a situações estranhas e sobrenaturais, fá-lo assumindo claramente o seu carácter simulado e criando um mundo paralelo sem hipótese de contaminação com o mundo real”."

    Concordo por completo, extraordinária colega. Uma explosão fabulosa de literatura gigantesca de si.
    Com respeito pelo seu valor imenso.
    Sempre a admirá-la.
    Adorei.


    pena

    Bem-Haja, pelo seu talento.
    Parabéns, colega.

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